sábado, 31 de janeiro de 2015

Foto #031


O livro da vida

-Sabe o que eu estava pensando?
-Na última quermesse antes do fim do mundo, no sabor da fogazza de frango com catupiry enquanto os meteoros caiam iluminando a noite lindamente.
-Não exatamente isso. Mas bem que poderia. Tem seus catastrofismos também mas com menos pirotecnia.
-Então conta lá.
-O livro da vida.
-Que livro da vida?
-O livro da sua vida. Imagina uma estante mágica. E tem um livro lá que é a história da sua vida toda. E você pode pegar e ler. Você ia ler? Mas tem que ler até o final!
-Olha, não sei. Certeza que já pensaram nisso. Já pensaram em tudo, hoje em dia, não é mesmo?
-Tá, mas você ia ler o livro? Saber o que acontece depois?
-Ih, mas esse é o óbvio. Esse livro tem outros problemas também. E nisso não sei se já pensaram muito bem.
-Que outros problemas?
-Saber o que vai acontecer no futuro é um problema clássico de filosofia. Bola de cristal. Videntes. Astrólogos. O futuro e seus encantos. Mas com esse livro seríamos confrontados também com nosso passado. Imagine que sua vida vai até o capítulo oitenta. E você está no capítulo trinta e oito. Mas achou o livro super sem graça até aí. Como é que fica?
-Nossa, é verdade. Mas também pode descobrir que coisas bobas foram mais importantes do que parecia. E que coisas que você achou super importante são as sem graça.
-Pois é. Você achou que aquela mudança de emprego tinha sido impressionante. Você achou que foi super legal quando terminou com aquela namorada. Mas vê que, revisando a história, não é bem assim. E vê que aquela pessoa que ajudou, tal dia, ou aquele conselho que deu num ônibus, bem de improviso e sem grandes preocupações, causaram grandes mudanças.
-Mas tem que ler o livro inteiro. Não pode ler só o começo.
-Hmmm. O futuro também pode ser complicado. Quem escreveu o livro? É como um diário vindo do futuro? Ou é em terceira pessoa? Ou narrado por outra pessoa próxima? Porque essas coisas mudam. A gente vai saber do futuro, mas quando vivê-lo não vai ser bem assim. Vai ser como o problema da primeira parte da vida, mas ao contrário. Você lê a história e fica esperando uma coisa, mas conforme a coisa toda acontece, vê que e experiência de viver aquilo foi diferente.
-Não iria perder a graça?
-Em um certo sentido sim. Perder a graça por saber o que viria. Mas experimentar é sempre diferente de saber.
-Afinal, você leria o livro?
-Não.

Sabor preferido

Qual seu sabor preferido?

Eu gosto de chocolate. Eu gosto de baunilha. Eu gosto de creme.

Gosto de olhar com sorriso.

Gosto de acordar cantando.

Gosto de cheiro de chuva.

Gosto de por do sol com pé na areia e barulho de onda. Brisa no corpo.

Gosto de tirar a meia depois de um dia cansativo.

Gosto de Ani di Franco e da Marisa Monte.

Gosto de batucar latas velhas com amigos na calçada.

Gosto de reencontros.

Gosto de morder sua orelha de leve, em um abraço apertado, enquanto a gente olha para o mundo e eu digo baixinho "olha lá, que bonito!"

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Foto #030


Amor animal

Você conversa com todos os cachorros que vê pela rua. E eles te aprovam. Te tratam bem, querem mais do seu carinho.

Mas eu não concordo com suas posições políticas.

Eu não concordo com seu modo de tratar meus amigos.

Eu não concordo com seu modo de valorizar o dinheiro sobre outras coisas.

Eu não concordo com seu jeito de valorizar aparência a coisas com conteúdo. Roupas contra livros.

Eu não concordo com os canais em que você assiste os mesmos programas de dez anos atrás num mundo com tanta coisa nova por descobrir.

Eu não concordo com você pensando em sofá quando eu quero ver o que acontece no mundo.

Eu não concordo com seu modo de interpretar maldades em tudo sempre que eu vejo boas intenções.

Mas você conversa com todos os cachorros que vê pela rua e eles te amam. E aí eu sempre sei que tem alguma coisa aí dentro que vale muito a pena.

Terror

Estico os pés. Sempre estico os pés antes de abrir os olhos. Deixar o sangue começar a se mover pelo corpo com mais vigor. Abro os olhos. O quarto está diferente. Não é o mesmo quarto em que eu deitei. É outro. Olho minhas mãos. Elas demoram a responder e vêem todas enrugadas. Brancas pálidas com manchas. Mãos jurássicas. Mãos que recebem aposentadoria e andam de graça de ônibus. Mãos que tremem pra chegar até a boca. Quanto tempo? Quanto tempo?

Preciso levantar dali. E se for meu último dia? Onde estou afinal? Pelo menos eu não fiquei burro. Já vou pensando em várias explicações. Alzheimer. Só pode ser. Filha da mãe de doença. Lembro que era 2015 mas está tudo com cara de 2060. Memória de curta e média duração com problema. Perda das lembranças mais recentes e permanência apenas daquelas mais distantes. Li sobre isso. Li sobre isso em 2006 ainda. Em um livro de papel. Parece não ter nada de papel por aqui. Há fotos nas paredes. Fotos nas paredes! Devem conter respostas. Coisas que fiz ontem. Na última semana. Nas últimas décadas.

Muitas pessoas sorrindo. Ao meu lado. Na cama. E eu estou na cama em todas as fotos.

Não foi Alzheimer! Fiquei desligado. Desligado na cama. Esse tempo todo! Não ouvi o que diziam. Não vi sol nascer. O sol se pôr. O que aconteceu nesse meio tempo? A vida aconteceu e eu não vi.

Estico os pés. Tremo as mãos. Abro os olhos. Acordo. Meu quarto. 2015. Puta pesadelo.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Foto #029


Metas

Quero ser um intelectual que não consegue emprego em universidade nenhuma para dar aulas. Assim continuo com muito tempo livre para ler os livros que eu quiser, sem me preocupar se eles são mainstream ou se sequer dizem respeito a um mesmo tópico. Vou ler a história da astrologia, depois vou ler livros céticos dizendo que a astrologia não funciona. Meu signo é naturalmente curioso e não dado a preconceitos.

Quero morar ao lado de um barzinho. Um barzinho meio de rock. Meio de jazz. Mas, fundamentalmente pequeno, de segunda categoria e meio espelunquento. Assim eu vou saber que só tem gente legal, e não essa gente tosca que frequenta os lugares pra ficar bem na fita, pra poder dizer que foi em lugares legais. E, mais que isso, vai ser um barzinho tão baixo nível que, quando eu montar uma banda, vão deixar a gente tocar lá.

Quero ter uma banda. Dessas que não tem ambinção nenhuma. Pra curtir. Pra sermos tiozões vovôs que não ficam em casa. Vou ser um vô descolado. Se tiver filhos. Se tiver netos. Se não, vou ser só descolado mesmo, que já tá de bom tamanho.

Vou ser um fotógrafo. Desses que ninguém conhece. Porque ninguém compra minhas fotos. Porque eu não vendo minhas fotos. Porque estou sempre andando por aí com uma máquina ocupado em fazer alguma coisa diferente. Que não segue um projeto específico.

Vou ser um amante apaixonado. Como fui há alguns anos. Hoje, sei lá, estou numa entre-safra de sentimentos e impulsos.

Boletim cultural

Eu também seria mais um com uma certa tendência a achar essas músicas sertanejas modernas um monte de "música de corno". O problema é a gente prestar atenção nas histórias da vida e ver que há muito realismo em todas elas. Não exatamente "muito corno", embora isso também exista. Mas, sendo um tanto quanto justo, muitas músicas tratam apenas de dores sentimentais um tanto quanto ridículas. A cornice das músicas é uma certa extrapolação de quem não está a fim de continuar ouvindo. Enfim. Ela vai se casar com outro. E ele está ali, na casa dele, olhando para a parede e pensando nisso. A vida há muito que seguiu cursos diferentes. Não há nenhum corno na história. Ninguém nem sequer sabe da história, a bem da verdade. Mas hoje ele soube que ela vai casar com outro e está ali, olhando para a parede e pensando coisas. Estou quase ligando para ele só pra dizer: "cara, larga de frescura e põe uns sertanejos pra tocar aí".

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Foto #028


Qual seu projeto para 2020?

Olha só que ano bonito. 2020. Dois mil e vinte. Vinte Vinte. O que você quer fazer quando chegar lá? Já pensou em começar seu projeto agora mesmo? Aprender um instrumento musical. Fazer uma viagem. Conhecer gente diferente. Escrever um livro. Ter um filho. Mudar de casa. Comprar outro carro. Fazer um curso. Temos cinco anos. Um pouquinho menos, na verdade. Quatro anos e onze meses, arredondando as coisas. Viagem. Gosto de planos de viagem. Viajar de avião? Mochilão?

Como o mundo estará quando chegar lá?

Teremos internet ainda? Ou vai acabar a água toda?

A imprensa ainda será livre? Ou vamos mandar na Globo?

O terrorismo ainda vai dominar os noticiários? Ou teremos tempo para os mortos da África?

Eu queria, até 2020, construir uma outra civilização. Esta aqui anda bem bagunçada.

Neosaldina

Estou suando. Sinto-me um porco girando no rolete, em cima do fogo. Mas não há fogo. Estou sobre a cama. Quarto apagado. Estou suando. Resolvo deitar para cima. Virado para o teto. Meditar até a preguiça desabar. A preguiça não desaba. Meus pés grandes querem cair para os lados. Não ficam na posição certa. Essa percepção me distrai. Gotas de suor escorrem da minha testa. A dor de cabeça está piorando. O lado direito do meu crânio pulsa a cada batida do coração. Uma bexiga prestes a estourar. Parece de borracha. Escuto o barulho das minhas pulsações. Provavelmente porque meu ouvido está comprimido contra as veias quentes e dilatadas. Minhas veias devem estar suando também, por dentro. Sinto-me um porco, metaforicamente falando. Quando eu era criança, achava que só velhos nojentos eram capazes de suar assim. Talvez eu já seja um velho nojento. Ainda que prematuramente. Resolvo virar de lado. Giro para a direita. Agora meu corpo parece pressionar meu coração. Meu braço direito está caído sem ter onde se apoiar e meu braço esquerdo está atrapalhando o corpo como um todo. Gostaria de desrosqueá-lo e deixá-lo na prateleira, mas não fui construido assim. Que projeto zoado. Estou suando. Deito de bruços. O rosto não foi feito para deitar de bruços, nariz contra o travesseiro. Quero uma cama de massagem, dessas com um buraco para solocar a cara. Nenhuma ninfeta gostosa viria me massagear. Não assim suado. Acho que aqueles óleos de massagem foram inventados para elas terem coragem de massagear velhos gordos nojentos. Vá lá, velho gordo. Tome um bom banho e quando voltar eu lhe passo esse óleo nas costas. Assim quando começar a suar vou achar que é o óleo e não vai parecer nojento. Disfarça. Quero melhorar logo. A febre parece piorar. Está calor, não está? Às vezes parece que está frio. Se eu prestar atenção, posso sentir o dedão do meu pé pulsando também. Meu coração vai estourar. Parece que vai estourar. Minhas mãos não sabem onde ficar. Com os braços esticados, a cara fica amassada demais contra o travesseiro. Deixo o braço esquerdo dobrado sobre o rosto. O direito fica esticado mesmo. Com a mão caída para o lado da cama. E se alguma aranha me picar? Tem aranhas nesse quarto? Tem muito bicho aqui. Uma gota de suor escorre pela ponta do meu dedo. Antes de sentí-la cair, adormeço.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Foto #027


Adultério

Estou há vários dias pensando sobre o assunto e não consigo chegar a merda de conclusão nenhuma. Na natureza não há um absoluto sobre isso. Adultérios são certos ou errados? Não há resposta para esta questão. Depende apenas de convenções. Há questões que a natureza responde. A qual temperatura a água ferve? Cem graus. Se eu soltar uma pedra, ela vai para cima ou para baixo? Para baixo. Adultério é certo ou errado? A natureza não está nem aí com isso.

Certo ou errado para quem? Para mim? Para você? Para a esposa traída? Para o marido traído? Para os filhos do casal traído? Para os filhos do Ricardão? O mundo é uma teia de pontos de vista diferentes tentando harmonizar-se. Mas nem todos os pontos de vista precisam se misturar demais. É claro que há questões práticas. Gravidez. Doenças. Mas, com os cuidados certos e a devida atenção a informações, entendo que estas possam ser vistas, hoje em dia, como questões à parte.

Tenho um amigo que está noivo. Vai casar em menos de um mês. E saiu nesta última madrugada para encontrar uma amiga sei lá onde. Uma amiga que não via há algum tempo. Vão à casa dela na praia, já que a pria não está tão longe assim e é certamente mais confortável que qualquer motel. Já eu, não estou noivo, apenas namoro. E vivo insistindo comigo mesmo que não devo me sentir culpado toda vez que eu "traio" minha namorada em pensamento. A palavra chave é essa: culpa. Sociedade de culpas em que vivemos. Culpa faz mal. Gera um sofrimento e ainda, automaticamente, nos faz associar este sofrimento à outra pessoa. É parte do processo de desencantamento. Se eu me culpar demais por não poder pensar em outras pessoas enquanto estou namorando, em pouco tempo a solução vai ser parar de namorar.

Mas há pessoas que vivem o mesmo sentimento com relação à atividade prática. Gente de maiores concretismos que eu. Gente que faz. Tem os bem resolvidos e tem os acidentais. Aqueles que as circunstâncias, de repente, os colocaram nessa situação. Aquela pessoa que você nunca imaginou que lhe daria bola mostrou interesse bem agora, que você já está namorando. Aquela amiga de muito tempo atrás apareceu e, dessa vez, rolou alguma coisa. Não daria para deixar para depois. Ou desfazer temporariamente o namoro. O moralmente correto seria simplesmente dizer não. Mas quando foi a reunião em que definiram o que seria moralmente correto e o que não seria? Eu não fui chamado! Daí que me sinto, com alguma frequencia, vítima de leis que não inventei. Se na área política, mal e porcamente, capengamos ainda para criar uma democracia que funcione, na área sentimental vamos muito pior. Misto estranho de ditadura com anarquia. E o conceito de diplomacia ainda nem foi descoberto.

Olé

Amigo, caro amigo. Andamos sempre juntos. Muito tempo juntos. Somos diferentes, é claro. Os livros que você lê, e inclusive os livros que você escreve, são totalmente diferentes dos meus. As músicas que ouvimos. E assim por diante. Mas compartilhamos muitos amigos. O que é ótimo. Ter no mundo uma pessoa tão próxima, alguém que ri junto e que entende a gente numa amizade tão verdadeira. Sou feliz por sermos assim amigos. Mas vou sucumbir a um certo egoísmo e orgulho. Sabe aquela nossa amiga? A professora? É uma amiga em comum, não é? Pois bem... ela me convidou para o casamento dela. E, até onde eu saiba, você não está convidado. Não quero ser um arrogante escroto mal educado aqui. Não é ruindade. É só sinceridade quanto a esse alívio existencial: ainda existo o suficiente para ter minhas próprias amizades. Sabe muito bem que eu tenho um medo enorme de, de uma hora para outra, deixar de existir

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Foto #026


Persona Erotika

Eu gostava de conversar com você. Uma mulher inteligente. Entendia minhas piadas. Tudo bem que não ria de muitas delas, porque sua seriedade sempre foi um tanto quanto diferente da minha. Mas só o fato de sempre entendê-las já era sublime. Não vou cair no machismo idiota de falar que é difícil encontrar mulheres que entendam boas piadas. A verdade é que é difícil encontrar seres humanos nessa condição. Não importa muito o sexo ou a falta dele.

Eu gostava de entrar no mar com você. Puxar seu corpo contra o meu e acariciá-lo, apertá-lo, por sobre a textura do maiô. Me deixava excitado. Contente. Era bom te beijar contra os golpes das ondas salgadas.

Mas você foi a minha primeira depressão sexual. Até você, eu achava que era completa frescura das pessoas essa coisa de priorizarem demais sexo em uma relação. Sexo é sexo, ora essa. Por que é que iria importar tanto? Mas quando transávamos você era... a mesma de sempre. Não mudava a voz. Não tinha um olhar mais delicado. Era objetiva como se estivese dirigindo a construção de um arranha-céu. Hoje, lembrando disso e refletindo sobre o assunto, resolvi cunhar um termo para o que você nunca teve: uma Persona Erotika. Aquela pessoa que você assume ser na cama, na hora de transar. No seu caso, era a mesma pessoa de sempre. Que tragédia, que tragédia!

Amor de Elite

-Nossa Adoniran, eu como mãe, eu fico doida, sabe? Tinha que ver quando minha filha conheceu o Lucas!

-Como foi? O que aconteceu?

-Ah, a Letícia, aquela retardada, saiu com ele e me falou que ia voltar até meia noite, sabe?

-E aposto, claro, que ela não apareceu.

-Não, e você não sabe. Começou a passar do tempo, e eu na minha. Sei lá, a gente sabe que pode atrasar um pouco. Só que daí deu uma da manhã. E nada. E eu não me aguentei e liguei pra ela. Pois não é que o celular dela toca lá no quarto? A anta esqueceu! Largou o celular em casa!

-Que idade ela tinha na época?

-Tinha dezoito. Mas sou mãe. Não importa se fosse dezessete, dez ou trinta. Ela tava fudida na minha mão porque eu comecei a me morder de raiva, sabe? Mas de desespero também. A gente começa a imaginar. E se aconteceu alguma coisa? Eu sabia o celular do cara. E o nome e sobrenome dele. Pois resolvi ligar pra esse tal de Lucas.

-E aí? O que foi que ele falou?

-Falou? O filho da puta nem atendeu! Aí é que eu fiquei louca mesmo! Adoniran... imagina uma mãe... a filha sai com um cara, você não sabe onde ele mora, nunca tinha ouvido falar dele... E não volta. E eu comecei a me martirizar. Queria me matar ali mesmo. Quer merda que eu tinha feito, deixado ela sair assim? A gente não quer ser sempre a mãe louca que não deixa a filha fazer nada, mas daí quando acontece essas coisas a gente se sente idiota, impotente. Mas eu não fico parada não. Liguei pro Gilmar.

-Seu ex-marido?

-Que ex-marido que nada! Naquela época o Oswaldo nem isso era. Nem isso! Aquele traste tava jogado na cama e não queria saber da história não. Até fui falar com ele. "Ela não chegou e você não sabe onde ela está. O que quer que eu faça?" Larguei ele dormindo lá. Mas o Gilmar não... O Gilmar é um amigo meu que trabalha no GOE. Na verdade, era quase cinco da manhã já quando eu liguei pra ele.

-Nossa! E aí?

-Aí que ele já me xingou até não poder mais ali, na hora. Mas me falou assim: "Ká... eu vou trazer sua filha. Não sei como, mas que eu trago, eu trago!". Ah meu amigo, eu tremi na hora, ainda tremo só de lembrar. Porque eu entendi o que ele falou, sabe? Viva ou morta, foi isso que ele quis falar. E eu tremi. Pois eu passei o telefone, o nome e sobrenome do Lucas. E lá eles foram. Só sei que minha filha estava no apartamento com o Lucas. Contou que o assim que ele ligou o telefone, o aparelho já tocou. E o Gilmar berrou do outro lado: "quero a Letícia aqui embaixo na portaria agora!". E ele nem sabia quem estava falando. Perguntou quem era e o Gilmar berrando. "Aqui embaixo, na portaria, agora!". O Lucas morava no terceiro andar. Olhou pela janela e viu umas quatro viaturas do GOE lá embaixo! Tremeu todo. Minha filha conta que ele até gaguejava! Daí ele desceu, tentou esclarecer a história mas tomou o maior esporro da vida dele, claro.

-Minha nossa! E sua filha nunca mais viu ele né? Que susto qu esse cara deve ter passado... Deve ter ficado seis meses sem nem paquerar ninguém.

-Que nada! Ele e minha filha estão casados. Casaram dois anos depois.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Compreensível

Namoraram durante a faculdade. Dois nerds. Ao invés de andarem de mãos dadas pelos jardins, divertiam-se com desafios matemáticos nos guardanapos do refeitório. Até que ele descobriu os poderes da vida. Poder viajar. Poder conhecer outras pessoas. Poder fazer escolhas. E terminou com ela.

Hoje?

Hoje ele envia cartas para ela sempre que consegue descobrir onde ela está trabalhando. Cartas em que ele assina com os adesivos de ursinhos que ela havia dado para ele anos e anos atrás.

Eu acabei de receber um e-mail dela: "olha, ele descobriu meu trabalho pela internet. Mas, por favor, se ele pedir meu endereço, não passa pra ele não, tá bom?".

Essências

As outras pessoas têm diferenças, com relação à gente. Muitas vezes essas diferenças são defeitos. Mas eu nunca consegui olhar diretamente os defeitos alheios. Sempre fui um outsider. E, da condição de outsider, olho as diferenças sempre buscando entender as limitações da minha percepção. As razões de eu estar fora deste universo. Se eu não sou vegetariano, e acho extremistas os que são vegetarianos, o que será que eu não entendi ainda sobre o mundo deles? Se eu não tenho raiva dos esquerdistas, então deve ter algo que a direita pensa que eu ainda não entendi direito. Se eu não entendo porque os ladrões roubam, deve haver algo na vida de um ladrão que eu ainda não entendi. Eu não vivi a vida deles. Não sei direito como é que é. Tenho esse sentimento diante de todas as diferenças que vejo. Porque eu sou um outsider. E as pessoas não me entendem. E eu sei que elas não me entendem por pura falta de informação. Acho que se entendêssemos por completo as essências, uns dos outros, encontrariamos sempre um denominador comum. E os diálogos seriam mais fáceis. Mas gostamos de bater o pé pra fazer valer sempre nosso ponto de vista sobre os outros.

Foto #025

Exemplo

"O que mais choca Holden é a prontidão com que seus amigos adotam o comportamento corrupto dos adultos."

J. D. Salinger, O apanhador no campo de centeio (1951)

Que obseração mais niversal a de Holden. Para mim há até uma certa ficção científica na própria existência de Holden. Por que ele não seguiu o mesmo caminho? Há que haver forças muito distintas para impedir que os seres humanos sigam os mesmos caminhos de sempre.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Inícios

A vida começa depois do café, dizem.

Mas quem falou que basta? Não basta só o café. É preciso o café. É preciso sentir os músculos das costas esticando. E a panturrilha também. É preciso ouvir o som da rua. É preciso sentir que ainda está friozinho lá fora. Me faz muito bem, pela manhã, quando acordo a tempo de sentir o frio lá de fora.

Foto #024

Prioridades

O documentário de hoje é "Catastrophe - Episode 4 - Asteroid Impact". Tá no YouTube, pode procurar.

Aí eu fico aqui pensando. Se esses caras que têm telescópios e satélites descobrissem hoje um grande asteróide gigante viajando à Terra muitas vezes mais rápido que a velocidade do som, com a certeza de acabar com a humanidade... Eles iriam nos contar? Ou fariam de tudo para manter os ânimos da bolsa de valores sob controle até o último minuto?

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Furacões

Estou assistindo um documentário. O YouTube tá cheio deles, e eu, antiquado que sou, adoro assistí-los. Super Hurricanes and Typhoons. Mas um aspecto me chama a atenção, quase impedindo que eu continue acompanhando a narrativa. Sempre que mencionam um grande furação histórico, fala-se no prejuízo. Tantos bilhões. Tantos e tantos bilhões. Eventualmente mencionam o número estimado de mortos, mas isso é apenas uma informação paralela.

A humanidade aprendeu a arte da contabilidade mas esqueceu a arte do valor.

Antiquado

Já houve o tempo, não muito ido, onde de mim zombavam por querer ainda usar a máquina de escrever, aquela mecânica, para criar meus textos. Hoje fui flagrado vivendo já outros anacronismos:

-Sério mesmo Adoniran? Você que escreve sempre, tem só o blog? Ainda não fez uma página no Facebook?

Pertenço ao milênio que se foi.

Foto #023

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Foto #022

Acuerdos

Trabalhar em casa, essa coisa de Home Office, convenhamos: quando a gente gosta do trabalho, é inevitável. Quando a gente não gosta do trabalho, é uma mentira. Uma mentira que contamos para nós mesmos. Uma promessa impossível de honrar. Uma tortura. Uma manifestação da opressão capitalista em nosso espaço privado. Um holocausto psicológico. Não curto não.

Gerações

Antigamente havia uma ênfase em fazer. Hoje somos educados para ter títulos e conseguir bons salários. Passamos duas décadas sendo educados assim: ficamos sentados com a mente desligada, buscando descobrir qual artimanha devemos fazer para conseguir a aprovação no fim do semestre. Não é algo pró-ativo. Não é algo que desafia a superação. São vinte anos sendo ensinados a atingir o mínimo desejado. A não buscar mais nada além daquilo.

Então não me espanta que, já na idade adulta, não estamos assim tão interessados em política. Ou em acompanhar avanços científicos. Ou a ver algo mais mentalmente exigente que Big Brother. Nossa civilização caminha para a preguiça existencial. O sofá é há muito tempo mais cultuado que a biblioteca.

Quem serão os empreendedores do futuro? Os inventores? Aqueles que vão quebrar fronteiras e barreiras?

Eu tenho uma raiva incomensurável do rolo compressor, da máquina destruidora, que é a escola moderna.

Tempos

Ela ia mudar de casa. Uma nova vida. Um novo começo. Encontrou no fundo do guarda-roupa a caixa cheia de cartas. Cartas que ela recebera dos namorados. Cartas que ela escreveu e nunca enviou. Diário acidental.

Ela ia mudar de casa. Uma nova vida. Um novo começo. Pegou as roupas. Jogou as malas no carro. Chegou a casa nova e não via a hora de ligar o wi-fi.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Instantes

O frio gelado do metal contra meu abdomen, o medo trincando minha espinha. E aquele sussurro em voz sepulcral.

-Entra logo.

Entrei.

Cartões de banco. Senhas. Celulares. Notebook. Tem notebook?

Se eu fosse mulher, estaria sendo estuprada? Pensei nisso. Não tenho um estupro para oferecer. Vou simplesmente morrer?

Não olhei o rosto. Nenhuma vez. Olhei o tênis. A calça jeans. Coisas de shopping.

-Tô saindo. Cê me viu aqui? Me viu aqui?

Não. Não vi.

Beijo do Gordo

Se eu fosse entrevistar o Jô Soares em alguma ocasião, perguntaria sobre sua ida à Globo. Depois de tanto mal que a Globo lhe causou. Depois de tantas deslealdades e golpes baixos que viu a Globo desprender não só contra si mesmo, mas contra tantos outros artistas, outras emissoras inteiras... Deixar o dinheiro falar mais alto? Por que? O SBT não iria renovar seu contrato? Ou simplesmente não poderia pagar a mesma quantia? O plano de saúde era melhor?

Mas não se trata apenas do Jô. Cada um de nós enfrenta, ao longo da vida, o mesmo tipo de dilema. E por diversas e diversas vezes. E o conflito é esse: defender princípios amplos ou meus interesses imediatos?

Vivemos em um mundo que aprendeu e ensina a segunda opção. A primeira só serve para deixar filmes e romances mais bonitinhos.

Foto #021

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Mistérios de Janeiro

Estou escrevendo. Estou lendo. De manhã, depois de tomar o primeiro copo d'água do dia. Depois com os pés estendidos sobre o puff, encostado no sofá e copo de suco de laranja fresquinho ao lado. E vou lendo, lendo. E antes de sair do trabalho, ainda escrevo mais um pouco. Vou para o trabalho. Num dia almoço com o pessoal do escritório. Noutro saio sozinho por aí, acho qualquer lugar nas vizinhanças da República que me chame a atenção. Almoço e leio um pouco. Nesses dias, prefiro sair mais tarde. Ou mais cedo. Porque entre meio dia e uma da tarde é uma loucura. Se você abre um livro à mesa sente-se imediatamente um folgado tomando o lugar dos outros. São Paulo. Cidade grande. Cheia de gente. Será que depois de janeiro será business as usual novamente? Vou dormir até mais tarde, consumido pelo cansaço e com sonhos embaralhados pelas insônias. Vou almoçar já pensando no sono da tarde e vou chegar em casa querendo desligar a cabeça? Se for assim, meu próximo livro vai precisar de vinte Janeiros para terminar de nascer. Ah, Janeiro... como você faz isso?

Foto #020

Métricas

Se o Raul Seixas tivesse se permitido ir ao Jardim Zoológico dar pipoca aos macacos, será que ele acabaria menos amargurado com a vida? Ou certas ragubentices existenciais trancendem as mais leves experiências reenergizantes?

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Foto #019

 

 

Born to be a criminal

Em Madrid, a grande maioria dos jovens envolvidos com roubos são enviados pelos seus próprios pais, uma vez que até determinada idade elas não podem ser consideradas responsáveis pelos seus atos. Elas vão sozinhas e tentam roubar mochilas, bolsas. Ou, principalmente, dinheiro sendo sacado de caixas eletrônicos. Há favelas nas cercanias de Madrid. Favelas que fazem as favelas de São Paulo parecerem cidades modernas, limpas e avançadas.

A jovem menina, de treze anos, casou. Uma cerimônia bonita. Não em um lugar bonita. Não com um cheiro bonito. Mas com sorrisos, com pessoas reunidas. A jovem menina tem dois méritos fazendo do novo marido um homem de sorte. É uma virgem. E sabe roubar. É ágil para surrupiar bens alheios e ráida para correr.

Os pais estão orgulhosos.

Fronteiras da normalidade

Um punhado de pessoas morreu na França e o mundo acordou, novamente, para a cruel ameaça do terrorismo.

Apenas no trânsito, no mundo, vemos o mesmo número de morte a cada 8 minutos. Mas é normal.

O pobreza mata outros milhões por ano. Atacando cruelmente sejam velhos ou crianças. Mas é normal.

Erros hospitalares matam muito mais do que câncer, mas são erros velados, frequentemente a culpa é colocada sobre o próprio morto: ele não resistiu. Morreu. E é normal.

Mas o terrorismo... O terrorismo exige a intervenção de nações inteiras. Governos, polícias, exércitos. Comoção das emissoras e reclusão do povo. Porque não é normal.

Não é normal.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Indicadores do Macrocosmo

Se os noticiários e as campanhas políticas começarem a exibir indicadores de felicidade humana e pararem de mencionar indicadores de crescimento econômico, então a humanidade terá alguma chance de se salvar. Esse dia parece próximo pra você?

Foto #018


Daí o cara do meu lado, já todo adulto, falou "afe, que perda de tempo. Pagar pra ficarem girando você por aí."
E eu me pergunto se na vida toda não é assim. Aceitamos essas aventuras em que somos virados de cabeça pra baixo e submetidos a emoções que nem imaginávamos.

Indicadores e coisas indicadas

Vivem dizendo lá no Facebook: valorize as mulheres que têm mais livros do que sapatos.

Há um machismo sutil aí. Homens que pouco valorizam os livros também não valem nada.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Foto #017


Presunção humana em sua máxima expressão? Eu gostaria muito, muito, de ter botõezinhos para acertar, conforme a vontade, diversas coisas da vida.

Limites

Quem define os limites para a humanidade?

Se não formos espertos o suficiente para reconhecermos nossos limites nós mesmos, de uma coisa tenho certeza: a natureza vai intervir, e sua força é absolutamente insuperável.

Das maravilhas de se apaixonar

-Desde que, na infância, descobri Chico Buarque, tenho essa dupla sensação de maravilha descoberta e de que nada mais será tão belo.

Cecília, querida amiga, me entristece com essas palavras. Terminamos o chá. Rimos de fofocas triviais para encher os silêncios. E vou embora pensando na tristeza daquela declaração. Não desmerecendo em nada a obra do venerado Buarque, mas creio que minha querida amiga padece desse distúrbio de percepção que chamo de Fixação nos Absolutos. Somente o referencial absoluto importa e todo o resto perde escala.

Ela me lembra um amigo meu, Ricardo, que não conseguia ouvir, por um segundo que fosse, uma criança brincando com um instrumento musical.

  • Cacete, que barulheira dos infernos! Vai aprender a tocar primeiro antes de sair por aí fazendo barulho!

E eu ali, maravilhado com o aprendizado acontecendo espontaneamente, diante dos meus olhos. E meu amigo, injustamente, comparando aquelas crianças com seus referenciais musicais abolutos, seja de rock, música clássica ou o que for.

Quanta injustiça cometemos contra nós mesmos, desprezando nossas capacidade de apreciar.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Checklist

O procedimento a seguir deve ser adotado como obrigatório nas ocasiões pertinentes a fim de evitar a recorrência de problemas verificados recentemente:

-Ao tomar uma latinha de cerveja em uma mesa na calçada e, ao mesmo tempo, observar uma gostosa em trajes veranísticos correndo baywatchmente por aí, verificar sempre se o buraco da latinha está virado para o lado certo.

Definições

A civilização atual é caracterizada por um modo de vida baseado no crescimento das cidades. E cidades são agrupamentos humanos grandes o bastante para exigir que recursos necessários sejam trazidos de fora.

Quantos dias faltam para o fim do mundo?

Fundamentos

Uma questão que, ao meu ver, é fundamental para uma profunda compreensão do verdadeiro papel da literatura na aventura humana: será que Anaïs Nin era boa de cama?

Foto #016

Eis que, em frente a uma sorveteria em São Sebastião, encontro esse grande triciclo. Está anunciado como o maior triciclo do mundo. Com a estupidez exagerada dos americanos vivendo no mesmo planeta, duvido que essa informação seja correta. Mas uma porção gringa dentro de mim diverte-se imaginando como seria chegar no sítio dos amigos com um desses. Ou a uma festa de casamento (a noiva iria me odiar até o fim dos dias, certamente). Ou simplesmente em frente à casa de alguém que pediu uma carona. "Sobe aê!".

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Foto #015


Obrigado pela visita nessa manhã improvável tão cheia de concretos e arquitetura morta, ó voador pedaço da natureza.

Feliz Páscoa!

A ilha de Páscoa é um lugarzinho boiando no meio do nada em que um punhado de seres humanos começou a consumir recursos e recursos da ilha, deixando a população crescer descontroladamente até que todos os recursos foram consumidos, o ecossistema local entrou em colapso, as pessoas guerrearam, brigaram contra os deuses ou choraram desoladas a morte dos outros, esperando chegar a derradeira vez. Um alerta que estamos ignorando. Nós, os habitantes do Planeta Páscoa.

Fagocitado

Em um desses documentários super alarmistas, catastrofistas, precisos e corretos que podemos encontrar no YouTube, vi uma declarção interessante. "Eu quero sair desse sistema, mas agora o sistema está em todo lugar".

Para onde quer que você vá no mundo, o clima estará se alterando por consequencia da atividade humana no mundo. As espécies animais colapsando por alterações no meio ambiente. O regime das águas sendo alterados. Os raios solares tornando-se mais intensos por conta de danos nas camadas mais externas das nossas proteções planetárias (o que parece coisa de ficção, mas é uma imagem assustadoramente precisa).

Não há mais para onde fugir. A natureza foi engolida pela civilização.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Câncer

Uma comparação que nunca consigo evitar: sempre que pego um avião e vou ali na janelinha, reparo nas manchas de cidade cercadas de natureza. E lembro das imagens das revistas científicas, mostrando células contaminadas.

Microcosmos

Não consigo resistir. Vindo de uma cidade pequena, sinto-me conectado à vida das pessoas próximas. Assim, sei que minha vizinha trabalha na prefeitura, uma informação que não deveria me interessar. Uma outra coisa que parece ser cacoete de gente de cidade pequena: eu me interesso pelas notícias. Vejo o nível das represas e essa parece ser, no momento, a questão mais importante para esta cidade. Só que a cidade não acha isso. As notícias sobre as chuvas e o total sumiço das notícias de falta de água nas represas parecem sintomáticas de um sentimento de hollywoodianismo profundo. Algo que não se cura com cinco ou dez aninhos de terapia. Talvez isso explique porque, todos os dias, eu escute minha vizinha lavando o quintal. Mangueira na mão, aquele fiozinho de água saindo sem parar enquanto ela molha aqui, varre, molha ali, varre, molha ali mais um pouquinho, e assim vai por uma hora, uma hora e tanto. Já está chovendo, não está? Não há mais problema com as águas. Essa minha vizinha é louca. Essa cidade é louca. Talvez a humanidade inteira esteja condenada às suas esquizofrenias incuráveis.

Foto #014


Há uma pilha acumulada sobre a mesa. Outros tantos e tantos e tantos nas estantes. Alguns em caixas. Outros em pilhas ao pé da estante. Um ou outro na cabeceira. Sempre uns três ou quatro na mochila.
Preciso deles. Não sei explicar. Sou o que sou graças a eles. Tudo o que li. Tudo o que penso quando acordo, olho para a janela. Quando a água escorre pela boca num dia quente. Quando olho para alguém. Nos olhos. Quando leio notícias. Quando tiro fotos.
Meus pensamentos, meus julgamentos, minhas idéias, minhas criações: meus livros. Obrigado por me ensinarem sobre o mundo o que eu jamais descobriria investigando sozinho por aí.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Medida de impacto

Ouvi na lanchonete:

-Cara, foi sério mesmo, saiu até no jornal da Globo!

O problema com essa lógica é sua falaciosa recíproca: se não saiu na Globo, não foi lá tão importante. As pessoas aprendem essas regras subentendidas que depois ficam assim, impregnadas na civilidade de cada um igual piche quente e sujo ficaria preso num delicado vestido de noiva.

Foto #013


Dizem que o não se deve exagerar nos enfeites. Mas que também não devem ser muito espalhados. Uma boa densidade de penduricalhos deve ser encontrada. E o estilo deve ser coerente, claro. Não vá me colocar heróis da disney, X-mens e afins, só porque seu filho gosta.
Essas receitas são típicas. Mas hoje, vendo fotos antigas dos natais, vejo que o que há de mais especial em uma árvore de natal é a união e alegria daqueles que a preparam. A festa que é para as crianças poder mexer com aqueles enfeites subitamente transmitados em brinquedos. Porque tudo é brinquedo na mão de uma criança feliz. E os adultos ao redor, sorrindo. Somos nós que enfeitamos as árvores, mais do que os enfeites em si. E um dos segredos que a Era Moderna esconde de todas as gentes é bem esse: poderíamos fazer isso com todas as árvores, todos os dias.

Conjecturas sobre o fim

E se o mundo for acabar? Nada como nos cinemas. Não o mundo como o planeta inteiro, explodindo contra um super asteróide ou então invadidos por uma raça alienígena hostil. Mas o mundo tal como o conhecemos. O mundo, como diria Tutty Vasques, como tudo isso que está aí.

Variações no preço de petróleo. Falta de água em grandes cidades. Crise de xenofobia na Europa, que vinha se consolidando como o centro cosmopolita do mundo. Estados Unidos sucumbindo à estupidez que cultivou depois de tantos anos de domínio. Chineses decidindo preços e criando novos bolsões de pobreza. Aliás, por pior que pareça, haveria uma certa justiça em ver os chineses escravizando boa parte do mundo em bolsões de pobreza, nos fazendo trabalhar para eles a preço de nada, não acha?

Desculpe

Não tem nada que assuste mais do que uma invasão. Eu sei, porque minha casinha em Linhares foi arrombada uma vez. Eu não estava lá. Mas, quando cheguei, vi que estranhos a haviam invadido. E não levaram nada sabe, nada mesmo! Eu tenho livros. E o meu computador é sempre um computador com dez anos de idade ou mais, em cima da mesa. Dá preguiça de roubar. Esse episódio me perturbou mais do que o assalto no Rio. Que foi a mão armada. Com cano na cabeça e ameaças olho no olho.

Há algo de psicológico responsável por essa diferença. O evento no Rio deveria ser muito mais grave em minhas lembranças do que a invasão da casinha de Linhares. Mas não. Lembrar da casa bagunçada, das coisas reviradas, dá mais raiva em minhas lembranças do que as memórias dos instantes em que a vida esteve por um fio.

Eu sei que eu entrei nos seus espaços sem ser convidado. A página estava na internet, não é mesmo? Qualquer um no mundo poderia entrar lá. Mas era seu espaço. E meus comentários eram invasivos, bagunçavam a ordem natural das coisas. Toda vez que acesso sua página e vejo que o tempo vai passando, passando e passando, e você não escreve mais, fico pensando se tem algo a ver comigo.

Talvez seja pretensão demais por minha parte. Achar que eu, sozinho, teria tanto peso no silenciar de suas inspirações. Talvez tenha sido essa coisa mais horrenda, insensível e indiferente: o chegar da vida adulta. Torço por isso. Para não ser culpa minha. Mas isso também me entristece. Achar que eu poderia, algum dia, desfazer esse seu sumiço, me conforta de algum modo. Eu o faria se soubesse como. Já contra a vida adulta, o que posso fazer?

Você tem o trabalho. O cansaço dos ônibus de ir e vir. Os tempos contabilizando salários e contas. A comida para preparar. O apartamento pra arrumar. O namorado pra curtir. A família para visitar. Os amigos.

Quando tem aqueles tempos sozinha, você diante do teclado, você e seus sentimentos. Aquela solidão espiritual para psicografar belezas de lá de dentro. Foi a vida que silenciou seus escritos? Ou foi minha anônima impertinência? Se tive qualquer parcela nisso: desculpe.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Foto #012


Lembro do calor. Lembro da garrafa de água gelada que tomei num instante planckiano. Lembro dos meus amigos. Cansados. Mas dedicados ao trabalho. E lembro da sombra daquela bela árvore. Lembro do cheiro da sombra. Coisas que só existem no litoral.

Refutações

Ficaria feliz o Thomas Kuhn, o Popper e essa gente toda, ao saberem que fiz uma teoria falseável.

Mas estou com um problema quanto às conclusões.

Eu disse que a vida era algo que acontecia no terreno difuso entre os extremos óbvios.

Mas eu observei que eu escrevo mais, muito mais, quando estou muito feliz ou muito triste. Muito empolgado ou muito resguardado.

E agora não sei o que isso significa, porque sobraram duas conclusões possíveis.

Ou a vida acontece nos extremos, e minha primeira afirmação era falsa. Ou então a escrita não pertence, propriamente, à vida, e sim a algum domínio paralelo.

O que não deixa de ter, também, sua poesia.

Os tipos de família

Gosto de visitar as pessoas. Todas as pessoas. Visitas inesperadas, melhor ainda. Com o tempo fui aprendendo a diferenciar aquelas casas que recebem bem a surpresa e aquelas em que sou um visitante não anunciado, um incômodo a romper com a rotina diária. Gosto mais, é claro, do primeiro tipo.

E fui aprendendo que há dois tipos de família. Há aquelas em que, quando você está na mesa da cozinha contando histórias da tua vida, deve tomar cuidado para sequer mencionar uma mulher, dizer que ficou com alguém na balada ou que teve um caso com fulana ou ciclana. Vão julgar. Não que achem um absurdo a prática de procurar companhias por aí. Mas não é assunto para o coração central da casa. Vão olhar feio. Responder com silêncios.

E há aquelas famílias em que o diálogo se passa mais ou menos assim. Você começa a história, tateando, vendo até onde pode contar as coisas.

-Sabe quem eu fui ver ontem, de novo?

-Não, quem?

-A Michele.

-Olha só! Tá comendo?

Daí a mãe do meu amigo ri e responde:

-É claro que ele tá comendo! Acha que foi encontrar com a mina pela terceira vez pra falar de Big Brother? Ver o que ela achou do terrorismo na França? Ah, acorda né Rafael!

Famílias italianas. Adoro famílias italianas.

Por que fazem ficção?

Outro dia tomei em minhas mãos um grande volume de ficção. Imaginei quantas horas e horas e horas de trabalho foram desprendidas para se chegar àquele resultado. E aí fiquei pensando que somos uma espécie muito estranha. Tantos e tantos problemas reais, concretos, por serem resolvidos, e essa gente por ai, com os tecladinhos no colo, ou os tiozões ainda nas máquinas de escrever, inventando mundos que não existem. Diálogos que nunca aconteceram. Emergências que nunca ameaçaram ninguém e soluções impossíveis para problemas que nunca existiram.

Será que existe um ramo próprio nos estudos literários para tratar desse problema? Será que os antropólogos já pararam para pensar nisso?

Resolvemos muitos problemas práticos. Nós, a humanidade. Construímos pontes. Entendemos os movimentos do Sol. Aprendemos a plantar. Aprendemos a fazer roupas e a fazer máquinas para fazer roupas. Inventamos a roda.

Mas fico sentado aqui, nessa poltrona num canto da livraria, vendo quantos livros existem tratando de problemas reais e quantos existem tratando de qualquer outra coisa, histórias inventadas, romances, ficções... E penso que a abordagem de problemas reais é um evento acidental, um efeito colateral de nosso impulso maior: o impulso de criar histórias. Eventualmente, ao tratar de coisas reais, a história vai ter sua coerência auditada pela natureza do mundo. Ciência. Engenharia. Medicina. Mas em outros domínios as histórias são mais e mais livres e aí florescem com toda sua coerência.

O impulso de criar histórias é nosso impulso de tatear no escuro dos domínios desconhecidos.

domingo, 11 de janeiro de 2015

Foto #011

Tem esse sentimento agora. De que parte da realidade olha para frente e parte olha para trás. Eu gosto do passado. Eu gosto de lembrar das coisas, sentí-las nas minhas lembranças. Talvez isso crie minha paz com o presente. Um gosto de passado acabando de escorrer, acabando de se tornar um antes, um outrora. Quero olhar para o meu passado e continuar tendo essas boas lembranças, mas é hora de olhar para frente.

Ah, se você soubesse

-Ow, seu cafageste!

-O que?

-Eu descobri, estou sabendo tudo!

-Tudo o que? Do que está falando?

-Sobre a outra!

-Que outra? E a gente nem é namorado!

-A outra página! Seu blog não é sua única página, não é? Há uma página secreta!

-Não é secreta, calma, eu só nunca tinha falado pra você!

-E daí que nunca tinha falado pra mim? Você conhece meu blog secreto. Eu te conto as coisas. Você não me conta nada. Mal amigo. Mal amigo!

-Eu te conto as coisas, claro! Não conto tudo, sei lá! Nunca achei que você fosse se interessar, só isso.

-Talez eu não fosse me interessar, mas caberia a mim julgar. Mas como é que eu poderia me interessar, ou não, sem ao menos saber que a página existia?

-Tá bom, tá bom, olhando por esse lado você tem alguma razão, mas agora você já conhece a página.

-Agora não adianta mais. Não vou ler mais. Ou, se eu ler, as coisas já passaram. Não tem sentido ficar lendo comentários sobre o que aconteceu há tanto tempo.

-Mas eu ainda leio todas as coisas que você escreve. E as antigas escritas há muito tempo.

-Afe, quanta perda de tempo. Já era. Não adianta mais.

History Channel

O ápice do império está no passado. O tempo é de transição de marés. Não sei para onde. Não sei quem vai conquistar sei lá quantos territórios nas próximas jogadas. Mas a nação que se construiu a partir da inventividade, do empreendedorismo e da livre iniciativa acabou por cometer um erro: construiu confortos demais e educação de menos. A lição que vai ficar dessa época, desses dois séculos, é a de que o progresso material humano não pode ocorrer independentemente do progresso intelectual. Infelizmente é muito mais fácil democratizar bens materiais do que cultura, e há pressões opostas operando. Bens materias são democratizados pelo consumo. Bens intelectuais não vendem tão bem. Não sei como será o futuro. Mas sei que não foi nessa geração que acertamos todas as tacadas.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Mais um a Deus

Uma mensagem no Whatsapp. "Ele não resistiu, morreu nesta noite." Mais novo que eu. Mais realizações que eu. Mais sonhos que eu.

O que eu lembro? Lembro da noite do bingo lá no clube. Ele estava animadíssimo. Comemorava cada número como a maior conquista da vida. Gritava, pulava. Criava um espírito de competição nos outros. Eu queria tirar meus bons números também para poder pular como ele. Queria ter minha sorte para poder ser feliz como ele estava sendo.

Ele será velado e enterrado hoje à tarde. Eu estou aqui, escrevendo sobre o assunto. Não éramos amigos próximos. Mas, ambos seres humanos, fico com essa sensação meio "soldado Ryan". Faça valer a pena. Estou vivo e parece até um tanto quanto injusto.

Eu não pensava nessas coisas quando era criança. Eu não pensava nessas coisas nem mesmo há poucos meses. Mas agora penso no quão bela e invejável e mesmo utópica é a imagem de todos morrendo de pura velhice, numa casa cheia de familia feliz, adultos, jovens e crianças. Uma morte com gosto de missão cumprida.

Foto #010


Ou o dia é bom. Ou não é.
Ou o amor é ruim. Ou é um tesão só.
Ou o cara tem que ir para a cadeia. Ou é vítima inocente e indefesa.
Ou o partido tá certo. Ou tá errado.
Ou o cara é corno. Ou não é.
Ou o café vem com leite. Ou vem puro.
Ou a grafia é errada. Ou é correta.
Realidade binária.
Mentalidade eletrônica.
Civilização binária.
Ou o mundo não vai acabar. Ou vai.
Ou somos culpados. Ou inocentes.
Ou estamos prozac. Ou coca-cola.
Ou SBT. Ou Globo.
Ou Imigrantes. Ou Anchieta.
O mundo é binário até no futebol. Ou é Pelé. Ou Maradona.
Ou é gol. Ou não é.
Vai ver o clichê é tão recorrente porque está correto: parando pra pensar, a vida, a humanidade toda... são bem como o futebol: o show todo é está no meio de campo, mas a contabilidade só enxerga os extremos.
Porque as interpretações ou são justas. Ou não são.

Sobre as piores impressões...

É mentira, eu sei que é mentira. Mas nos meus piores pesadelos eu tenho essa impressão de que o amor afasta. O amor repele. Talvez o meu amor. Talvez o meu jeito de amar. E isso cria um pânico que mal consigo descrever.

Quando deixei todos os exageros transparecerem, ela fugiu. Compreensível.

Quando amei de longe encarnei um fantasma, invisível. Ela não propriamente fugiu. Mas nunca me viu.

E quando amei por acaso, assim como veio, foi embora. Ela tinha as rotinas dela, as obrigações, os sonhos. Os trilhos nunca se tocaram. Passaram lado a lado e acenamos, de um trem ao outro, enquanto estivemos próximos.

Pensar que o amor repele é uma das coisas mais apavorantes que pode me ocorrer. Porque quero continuar amando. Quero continuar me apaixonando. Especialmente os amores sem explicação. Especialmente os amores inesperados. Especialmente os amores secretos.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Rivotril

Tenho saudades da Keren. A Keren está agora sei lá aonde. Essas pessoas não pertencem ao dia-a-dia de ninguém. São do mundo. Passam por nós como passa também a água ou o ar. Nos enchem de vida, uma vida fundamental ainda que sem hollywoodianismos. E depois vão sei lá pra onde, continuar seu ciclo incompreensível.

"Menino Rivotril". Assim é que ela me chamava. Uma vez, revelando filmes na sala escura da faculdade, achei que fôssemos nos apaixonar. Nossos sussurros se entendiam de um jeito, de um jeito! Aquilo era romântico. Ou quando fomos viajar pelo sul da amazônia. Conhecer como viviam os garimpeiros. Achei ali que iríamos ser mortos. Não é legal ser olhado com desconfianças por gentes de armas nas mãos.

Mas ela se dizia calma por minha causa. "Brigada, menino Rivotril". E isso me acalmava.

Credenciais

  • Chefe, gostaria de pedir uma licença não-remunerada para buscar tentar seguir carreira na minha paixão pessoal.
  • Sério? Mas você é muito inteligente para isso!

[...obrigado?!]

A single shot

... aquele momento com um gosto amargo na boca. Estou na beirada do trampolim, um dos pés já boiando sobre o nada. Está escuro. Não sei se a piscina está com água ou vazia. Vou pular.

Foto #009


Esta cidade está vivendo uma seca sem precedentes na história moderna. E, ao mesmo tempo, carros e pessoas estão sendo levados por enchentes relâmpago. No fundo no fundo, São Paulo é uma síntese da tragédia humana.

Mortes sem sentido

Esse atentado na França está, como tantas outras coisas, me sufocando em minha própria ignorância. Tanta coisa que eu não entendo.

Não entendo tirar outra vida em nome de um deus, qualquer espécie de deus que seja.

Não entendo ofensas levadas ao extremo por coisas pequenas. Um cartoon. Ou a declaração de um artista na TV. Ou um costume de uma outra cultura manifestado na mesa ao lado.

Há alguns dias passou na Globo "O Pagador de Promessas". Se o Zé do Burro fez sua promessa num terreiro, a Iansã, então a igreja católica não deve aceitar sua devoção. Por que?

Está para surgir uma religião da união. Uma religião cujo deus seja, ele próprio, a aceitação do outro e, e cuja salvação seja a busca de uma harmoniosa convivência com as diferenças.

Talvez seja tudo culpa dessa mentira utópica. Somos todos iguais. Somos todos iguais. Racismo é errado, afinal somos todos iguais. Homofobia é errado, afinal somos todos iguais. O voto deve ser universal, afinal somos todos iguais. Quanta mentira, quanta mentira! Somos todos diferentes. E é esta a verdadeira razão pela qual devemos aceitar a todos igualmente.

Confesso que, ainda que alguns dias atrasado para ler tudo isso, estou triste e chocado. Sei que há tantas outras mortes sem sentido acontecendo. No trânsito. Nos hospitais. Nas casas. Nos esquecimentos. Mas não precisava, ainda, de mais essas...

Realizações

Ontem eu acordei e fiz café para mim mesmo. Sozinho.

Fervi água para café solúvel.

Lavei as laranjas e fiz uma bela laranjada. Elas estavam na geladeira, porque assim eu tenho laranjada gelada sem gelo.

Saí de casa. Dei bom dia para as pessoas na rua. Brinquei com um cachorro que vinha por ali, e mais adiante fui ignorado por um gatinho que fugiu dos meus primeiros "psss-psss-psss!".

Não resolvi a causa feminista.

Não me informei sobre os novos ministros.

Não impedi a destruição da Amazônia.

Sei que o pedaço de frango que comi no almoço vinha de produção industrializada.

Mas sorri para o garçom e para a moça do caixa que cobrou a conta.

Não assaltei ninguém.

Mas não impedi nenhum assalto.

Mas não fui assaltado.

Na média, o quão útil foi minha vida hoje? Fico com uma sensação boa de ter tido um dia prazeroso. E com um peso na consciência por não ter feito o bastante. O mundo é cheio de urgências. Tão cheio de urgências, e com tantas pessoas as ignorando, que talvez um dia de descanso, um dia ao acaso, já seja luxo demais. Escândalo inaceitável. E amanhã? E depois?

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Professores

Quem foram os professores importantes em sua vida? Eu consigo me alguns.

Um professor de música. Não exatamente pelas aulas de música. Mas pela postura diante de tudo. Sempre disposto a rir. Das coisas engraçadas e dos problemas. Do aluno que não conseguia aprender e do dia em que invadiram a escola e roubaram alguns instrumentos. Tudo virava uma história divertida. Até comentei isso com ele. Foi uma das poucas vezes em que ele ficou sério, retrucando em seguida com seu linguajar peculiar: "mas claro, porra! vou ficar chorando da vida agora? Tanta coisa de ruim acontecendo e ainda vou deixar tudo pior choramingando por aí?". Me olhou sério. E, poucos segundos depois, começou a rir da minha cara de susto! "Calma aê que eu não vou te bater não Dodô!". Também tinha essa mania. Ninguém mais me chama de Dodô. Até tenho alguns apelidos. Variações de Adoniran ou um simpes Lê para o Leblon. Mas esse professor gostava de inventar apelidos.

Uma professora lá no primário. Os traços marcantes: era incorruptível, confiava em nosso potencial e era perfeccionista. "Você é capaz" era o que dizia sempre que pedia para alguém melhorar a lição.

Mas quem são, de verdade, nossos professores? Há tantos e tantos aqui que não vou poder homenagear.

Aquele pasteleiro lá da pequenina cidade do sul de Minas (nem lembro mais o nome da cidade, olha só que lástima!). Era perfeccinista e parecia, na verdade, que não estava interessado em vender pastel ou ganhar dinheiro. Estava interessado em agradar as pessoas que se sentavam ali para uma breve refeição. Seu pastel era praticamente uma obra de arte. E tinha boas conversas para quem se interessasse, ou uma boa postura profissional pra quem não queria ser incomodado (e, mais importante de tudo, era muito rápido em distinguir um tipo de gente do outro!).

Meu pai quando me ajudou a copiar a lição de um amigo e depois me deu a maior bronca não-bronca do mundo, me explicando, calma porém longamente, que naquela hora meu amigo estava brincando e fazendo qualquer outra coisa enquanto eu estava copiando a lição que não havia copiado na aula. Ele foi meu professor também, não foi?

De domínios e dominâncias

Meu irmão tem um pequeno império.

De certo modo posso dizer que as origens nunca foram as mesmas. A mesma família, a mesma casa, os mesmos pais, é verdade. É verdade. Mas a diferença de idade produziu uma certa diferença de mundos.

Ele saia para andar sozinho com o carro, pelo quarteirão. E eu podia ficar em casa. Matando o tempo como podia. Imaginando como deveria ser legal andar de carro por aí. No futuro, quando meus pés também alcançassem os pedais...

Hoje meu irmão tem um pequeno império.

Empresas. Ele faz negócios. Vende um carro e compra outro. Vende uma empresa e compra outra. De tempos em tempos se mete em encrencas. Inventa um negócio novo e dá um jeito de arrumar tudo.

E eu continuo introvertido. De certo modo, meus pés nunca alcaçaram os pedais e eu continuo achando um jeito para me distrair.

Falando assim parece algo carregado de fatalismo e um certo rancor, mas não é verdade. Enganos da narrativa exagerada. Sou o que sou e gosto de ser assim. Hoje fico inquieto quando meu tempo é consumido demais por empreendedorices em que não vejo muito sentido. Quero ter tempo para ler. Para as minhas músicas. Para as minhas viagens contemplativas. Para andar pelo centro. Da pequena Analândia ou pela Avenida Paulista. Que seja.

Foto #008


Certas coisas simples despertam em mim o senso do infinito. Amo olhar para uma folha em branco. Ou então segurar, em minhas mãos, uma caneta. O que um gênio faria com essas coisas? Ao mesmo tempo que são a definição do nada criativo, do trabalho que ainda nem sequer começou ou que nunca aconteceu, essas coisas guardam em si todas as possibilidades imagináveis e além. E essas coisas me oprimem. Uma folha em branco me intimida mais do que uma obra literária consagrada e volumosa. Pois ela pode vir a ser o maior poema jamais criado. A história mais fantástica jamais contada. Mais olha para mim e diz: "o que você vai fazer comigo? Aposto que não muito... te desafio!".

Em tempo: fui a uma agência dos correios dias atrás. Pedi uma caneta emprestada. Era uma caneta BIC. Notei que havia um papel dentro dela. Dizia: "Êxodo 20-15: NÃO FURTARÁS.". As BICs deveriam vir com este papelzinho já de fábrica.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Foto #007

Não sei se falo sobre a combinatória dos símbolos, sobre a comunicação humana ou sobre distâncias. Ou se falo sobre aquela poeirinha ali, entre os teclados. Nojento, né? Mas é também um testemunho do tempo. Um efeito inexorável. Quantas e quantas vezes já vi a faxineira do escritório com um paninho sobre esses teclados. Acho que foi ela, na verdade, que estragou as teclas dos telefones que tiveram que ser trocados. O Luiz, da mesa ao lado, gabava-se de poder continuar usando seu aparelho ruim. "Tenho a sorte de não ligar para ninguém com o número sete!" Como o sete é cabalístico, isso deve ter significado algo. Mas nunca entendemos a mensagem e por fim os astros autorizaram a troca por um aparelho mais "novo". Uso as aspas pois todos os aparelhos têm a mesma idade. Compraram trinta aparelhos, anos atrás, quando as ambições tiveram acesso às verbas. Mas as cinco pessoas dessa salinha comprovam: os negócios nunca deslancharam como imaginaram. Isso porque algo deu errado na combinatória das possibilidades, ou na comunicação dos símbolos entre as pessoas. Ou porque vendedores e interessados permaneceram, sabe-se lá porque, mais distantes do que deveriam.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Há tlânticos...

Sei das distâncias. Das distâncias de estar perto. Das distâncias de ouvir à noite. Das distâncias de entender que a vida tem um tamanho finito. O que serão dos dias? Já achei que fosse morrer. E não te dei tchau. Já ganhei na loteria. E não pulei com você sobre a areia da praia. Rindo com estranhos. Provando pra todos que a vida é boa. Que o mundo é bom. Você é um sonho e não sei direito quando foi que acordei. Ainda estou sonolento, tateando as paredes do corredor em busca de um copo de água na cozinha. Quantos copos de água até esvaziar o Atlântico e atravessá-lo a pé? Quantos sonhos até voltar no tempo? Quantas vezes o sol se por até que aqueles dias se apaguem?

Foto #006



São novas paredes. Mas também são novas liberdades. Por cima do muro estão outros horizontes. O ar que respiro nas manhãs é outro também. Imagino um transatlântico mudando de direção. Milhares de toneladas aproando um outro destino. Uma vida mudando de direção. Milhares de dias e agora o rumo é outro.

... sempre por um fio.

Nossa idade não é muito diferente. Ele é três anos mais velho.

Mas ele tem uma casa, uma esposa e uma filha. Coisas que eu não tenho.

Trabalha numa sala próxima.

E de repente, chega a enfermeira-chefe do ambulatório: "Ué, o Fred não fica aqui? Onde ele está?"

Levei-a até a sala dele. Ele estava debruçado sobre a mesa. Não seria uma simples dor de cabeça para motivar alguém a pedir ajuda diretamente ao ambulatório pelo número interno de emergências.

Eu ajudei a carregá-lo. Por duas vezes quase não se aguentou em pé. Estava suando, com o corpo quente, parecia saído de um forno a alguns segundos antes de derreter de vez. Colocamos o Fred na ambulância e eu fui junto, ajudar a retirá-lo.

E quando chegamos em frente ao ambulatório ele estava gelado. Frio frio frio. Olhar distante. Fala lenta. Seria uma queda de pressão neste calor infernal? Ataque de labirintite ou algo assim?

Depois a secretária me confessou, a boca pequena. Leucemia. Ele também tem leucemia. Toma uma tonelada de remédios. De tempos em tempos tem alguma crise.

Eu não sabia de sua silenciosa luta contra essa maldição. Tudo o que conheço é o sorriso intenso com que Fred cumprimenta todo mundo que vê, espalhando energia e otimismo por aí.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Dos lugares...

São Paulo não é uma das cidades mais bonitas do mundo: é um lugar lotado, barulhento, uma cidade que só serve para fazer dinheiro. Mas ainda assim descubro alguns encantos escondidos. Caminhar descendo a rua Augusta em um fim de tarde. Todo mundo saindo do trabalho, vivendo suas vidas, e você ali, à toa, andando sem horário, sem compromisso. Descobrir lá embaixo a Rua Avanhandava. Um lugar que nem parece estar em São Paulo, e isso talvez se deva à cara da Avanhandava ser tão genuinamente paulistana. De uma São Paulo que já não existe mais.

O sebo do Messias, de que tanto já ouvi falar. Com as putas zoadas ali na frente e os clientes que aparecem para negociar de tempos em tempos. Há uma poesia acontecendo ali. As putas ficam às costas da Catedral da Sé, mas estão entre as lojas de flores e ficam de frente para o Messias. Aliás, quando noto que o próprio Messias está fora da igreja, minhas dúvidas já começam a coçar.

Não vou concluir meus estudos em tempo hábil. Deveria ir ler os artigos. Os "papers". Deveria procurar um lugar para escrever. A escrivaninha de casa. Uma mesa em alguma biblioteca. O boteco no lado da república em que estou, lá na Santa Cecília. Aliás, a Santa Cecília... Lembra algumas cenas do filme "Ruas de Fogo", que passava no SBT quando eu era jovem. Já fui jovem.

São Paulo é uma cidade gigante. Mas em sua impessoalidade, em sua pressa para que tudo aconteça o quanto antes - o atendimento na padaria, as pessoas nas catracas do metrô -, encontro um espaço de paz. Esse espaço de estar sozinho ainda que estando rodeado por um mundarél de gente. Perdido por aí com meus pensamentos. Sensação nova para mim. Sensação ambígua. Cidade ambígua.

Foto #005


Se os rumos da vida fossem ditados por máquinas. Por engenhocas. Não. Não são. Parece que foi o Steve Jobs que disse, em um discurso, que percorrer a vida é como percorrer uma estrada escura em um carro cujos faróis iluminam apenas poucos metros à frente. E você tem que escolher para qual lado virar sempre que aparece uma bifurcação à frente. Mas não consegue ver ande as estradas vão levar. Só alguns metros à frente. Para qual lado virar?

domingo, 4 de janeiro de 2015

Foto #004


E os dias desenvolvem uma homogeneidade. Misturam-se como o café o leite. O chocolate. O nanquim que deixo pingar na água ao limpar a pena da caneta antiga. A novidade dá lugar à rotina. Mas na rotina encontro novos sabores. É uma nova rotina. O suco com leitura pela manhã. As conversas com risadas ao fim da tarde. Um novo clima para estes novos dias.

Onde há dúvida, há liberdade

Vi esta frase tem já uns tempos. Não sei onde. Se na pós-graduação em filosofia ou se na Contigo jogada na salinha de espera. Achei bela. Traduz um ideal. Não acho que seja, estritamente, verdadeira. Podemos, acorrentados, duvidar da razão daqueles que nos aprisiona, e ainda assim continuaremos presos. Mas essa frase trata de coisas mais profundas. Não na dúvida, mas na liberdade. Uma liberdade mental. Uma liberdade conceitual. É ali, não é, que as coisas começam. Na liberdade mental. No mundo das idéias. Nos questionamentos. Quando dizem a você que o comunismo foi uma catástrofe, e que não tem como funcionar, e você acredita prontamente, sem reconhecer que está comprando uma conclusão sem ter um profundo contato com os detalhes do raciocínio, então não é livre. Quando lhe dizem que o capitalismo é a fonte de todos os males da humanidade, e que o interesse privado e o egoísmo dos burgueses escraviza a classe média moderna, e você ecoa essas afirmações sem verificar melhor como o mundo funciona... Existem tantas formas de escravidão, não é? Nossa espécie é particularmente adaptada às escravidões sem correntes. E só há liberdade em um lugar: onde há dúvida.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Da minha lista de desejos

11 - Ignorar educadamente as pessoas ao meu redor para conseguir dedicar ao menos três horas do dia para aquilo que, pela manhã, planejei me dedicar.

Das críticas

Quando você critica alguém, ou um grupo, quem exatamente você está criticando?

Tenho visto que as críticas se dirigem aos estereótipos e não às verdades, às essências.

Quem odeia os petistas gostam de dizer como os petistas são idiotas. Mas o fazem com base no que o lobão falou dos petistas. Com base na crítica que o super imparcial Arnaldo Jabor escreveu sobre os petistas.

O mesmo vale para um petista criticando um direitista genérico.

Se os seres humanos se ouvissem mais, imagino, iriam se descobrir muito mais similares do que imaginam.

A humanidade luta contra inimigos imaginários. Critica fantasmas que não existem.

Ou então sou eu quem estou imaginando coisas...

Foto #003


sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Foto #002


De braços abertos, de coração aberto

Muitos familiares queridos estão longe. A calça está sendo repetida já há alguns dias. Demora chegar até ali. Estrada de terra. Desviando de pedras, buracos, lama. Ponte de madeira sobre o pequeno riacho. É claro que há toras quebradas. Um lembrete de que o tempo é implacável e a segurança é duvidosa, mera ilusão. Sigo em frente. O lugar, no meio da floresta, é de paz. Gansos correndo pelo gramado. Cachorros tranquilos, amistosos. Animam-se com a minha chegada e vêm pedir um pouco de carinho.

As pessoas estão me esperando para o jantar. Não é minha família. Mas é minha família. São as pessoas que estão aqui me acompanhando, esperando por mim.

Não era aqui que eu imaginava estar. Não era com essas pessoas que eu imaginei estar. Mas é aqui que estou. Feliz pelos bons imprevistos da vida.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Foto #001

Feliz ano novo

Que 2015 seja assim... foco na essência independentemente das roupagens!

... mais um começo!

Feliz 2015! Neste ano vou escrever todos os dias. Todos! Vou manter meu diário atualizado. Vou sair para caminhar pelas ruas. Fazendo caminhos diferentes sempre que possível. Vou passar em frente a quitandas, aquelas pequenas, administradas por um velho senhorzinho e seus dois filhos. Que estudaram, um é dentista e a outra é veterinária. Trabalham ali perto em suas clínicas, mas ajudam o pai na quitanda sempre que podem. Nada de redes franquiadas. Em 2015 não vou frequentar redes franquiadas. Vou comer bem. Chegar em casa, preparar um bom suco de laranja, feito a mão. Nada de espremedor elétrico, cruz credo. Não vou ficar falando com testemunhas de Jeová. Mas também não vou maltratá-los nem forçá-los a aceitar meu ateísmo, afinal também são filhos de Deus. Não vou gastar tempo falando mal das coisas. Não vou perder a chance de falar bem das coisas. Aliás, o céu está lindo hoje. Tomei um café da manhã delicioso numa mesa de madeira, numa cantina rústica mas muito bem decorada. Lá fora, um pequeno lago e marrecos. Me divirto com marrecos. Eles têm um jeito estranho de correr atrás das pessoas para proteger os marrequinhos. E os marrequinhos não estão nem aí com nada. Neste ano vou ver mais marrecos. E cachorros, pombos, gatos, jacarés. Quero ver jacarés. Vou andar mais de bicicleta. Vou até São Paulo, usar as ciclovias de lá antes que o PSDB assuma a cidade e resolva acabar com as ciclovias para dar mais espaço aos carros e ajudar os trânsitos. Em 2015 vou falar menos de política. Mas vou fazer mais política. Escrever para vereadores, senadores e deputados. Acompanhar projetos que interessem à minha região. E vou me preocupar em dormir bem. Dormir bem é importante. E não vou exagerar no café. Mas aceito umzinho sim... especialmente se for com um pão de queijo quentim!